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Mas maior é a vida

Profecia é história / 24 – Seguindo o nada, tornamo-nos nada: é a eterna luta entre fé e niilismo

Luigino Bruni.

Original italiano publicado em Avvenire em 17/11/2019.

 «Sei bem que o nome de saloio, na linguagem corrente da minha região é, agora, termo ofensivo e zombaria; mas eu adoto-o neste livro na certeza que quando, na minha região, a dor já não for vergonha, ele tornar-se-á nome de respeito e, talvez, também de honra».

Ignazio SiloneFontamara.

A esperança dos profetas verdadeiros é o oposto da esperança falsa e consoladora dos falsos profetas e é verdadeira e forte como um filho.

São muitos os que justificam ações injustas, em nome da algo de bom que aquelas pessoas ou instituições fazem, enquanto negam justiça e direitos (postos de trabalho, PIB…). E também ainda é demasiado débil o grito dos profetas que dizem que estas coisas “boas” nunca são verdadeiramente boas sem justiça, sobretudo sem a típica justiça concebida e medida pela perspetiva dos pobres. As razões da economia, da política e da finança transformam-se profundamente se olhadas, juntamente com Lázaro, a partir de baixo da mesa do rico opulento.

«Jeroboão [II] restabeleceu as fronteiras de Israel, desde a entrada para Hamat até ao mar da planície, conforme YHWH anunciara pela boca do seu servo Jonas» (2Rs 14, 25). Uma das constantes que encontrámos, nestes anos de comentário á Bíblia, é o seu pluralismo nas leituras dos dados históricos. Estas diversidades são de muitos tipos. Uma importante é aquela entre as interpretações dos factos dos profetas da corte e a dos grandes profetas bíblicos. Os profetas do palácio, quase sempre falsos profetas, ontem e hoje, têm como principal objetivo confirmar e tranquilizar os reis e os poderosos nas suas certezas e, sobretudo, nas suas ilusões. Os profetas verdadeiros, pelo contrário, não têm nenhuma agenda própria e, assim, têm a liberdade-obrigação de referir apenas as palavras que recebem. Por isso, são intratáveis, imprevisíveis, não domesticáveis, não à venda.

Neste capítulo, encontramos um exemplo desta típica diversidade. Para os livros dos Reis, este Jonas, provavelmente um profeta da corte, dificilmente o autor do livro bíblico que tem o seu nome, parece ter exprimido uma avaliação positiva sobre aqueles sucessos militares. Um outro profeta, Amós, um grande grande e contemporâneo de Jeroboão II, tinha dado, àqueles mesmos factos, uma leitura oposta: «Vós converteis o direito em veneno, e o fruto da justiça em absinto. Vós alegrais-vos por causa de Lodebar, e dizeis: ‘Não foi pela nossa força que conquistámos Carnaim?’ Mas, ó casa de Israel, vou suscitar contra vós uma nação que há de oprimir-vos desde a entrada de Hamat até à torrente da Arabá’» (Amós, 6, 12-14). Amós não é um profeta da corte, lê aquelas conquistas como ações de guerra de um rei injusto que, não respeitando a justiça e o direito dos pobres, não podia, certamente, agir conforme o coração de YHWH. Cerca de dois séculos mais tarde, o grupo de escribas que redigiu os Livros dos Reis, fez daquelas ações militares de Jeroboão II uma leitura diferente e, apesar de tudo, providencial: «YHWH não decretara ainda apagar o nome de Israel de debaixo do céu e, por isso, libertou-o pelas mãos de Jeroboão» (14, 27). O juízo complicado sobre Jeroboão II permanece negativo, também no Livro dos Reis («fez o mal aos olhos de YHWH»: 14, 24); mas, enquanto para estes redatores também um rei mau pode fazer uma boa ação, para Amós e para muitos profetas, a presença ou ausência da justiça torna-se o elemento determinante para avaliar todas as ações de um rei. Para os profetas, o direito e a justiça são o juízo absoluto da política de um povo, que pode estar próximo também de um outro juízo absoluto: o da idolatria. Por esta mesma lógica, Isaías, no início do seu livro, dirige-se assim a Jerusalém: «De que me serve a mim a multidão das vossas vítimas? - diz YHWH –. Estou farto de holocaustos de carneiros, de gordura de bezerros. […] Não me ofereçais mais dons inúteis… podeis multiplicar as vossas preces, que Eu não as atendo. É que as vossas mãos estão cheias de sangue» (Isaías 1, 11-15).

Com certeza que também os reis do tempo de Isaías fizeram sacrifícios e ofertas formalmente válidas e lícitas para a Lei; mas, para o profeta, as «mãos cheias de sangue» anulam o valor mesmo das ações mais religiosas. Porque aquelas injustiças e faltas de direito esvaziam de verdade qualquer outra ação, porque estes pecados não podem ser compensados nem condenados. Os profetas são parciais, partidários, desequilibrados, excessivos e, por isso, agradam-nos porque, assim, salvam-nos nos nossos cálculos e compromissos, no bom senso e na prudência. O século oitavo, politicamente tumultuso e idólatra, está cheio de muitos grandes profetas. Este foi o tempo de Amós, Oseias, de Miqueias e foi o tempo de Isaías. Devemos ler as suas profecias juntamente às vicissitudes históricas narradas nos Livros dos Reis e percorrer estes episódios acompanhados pelas palavras dos profetas. Descobriremos muitas coisas importantes. Veremos, por exemplo, que o Acaz de Isaías não se cruza com o Acaz do Livro dos Reis que, no capítulo 16, a ele dedicado, nem sequer menciona Isaías. Tradições e fontes diferentes, certamente, mas permanece misterioso não ver aqui o nome de Isaías ao lado de Acaz. De facto, este rei, no livro de Isaías é protagonista (pela negativa) do grande milagre de YHWH que afastou os assírios de Jerusalém. Mas também é causa de um dos versículos mais belos e poderosos de Isaías. Acaz, apesar de uma palavra específica («O Senhor falou ainda a Acaz: “pede, para ti, um sinal”»: 7, 11), desobedece e não pede um sinal. Essa recusa, porém, produz uma profecia maravilhosa que, sempre nos tira a respiração: «O Senhor, por sua conta e risco, vos dará um sinal. Olhai: a jovem está grávida e vai dar à luz um filho, e há de pôr-lhe o nome de Emanuel» (Isaías, 7, 14). O Emanuel, o sonho dos sonhos; um menino, o sinal dos sinais.

É verdade que não conhecemos Acaz sem ler a segundo livro dos Reis e o livro das Crónicas; mas também é verdade que, para ter uma ideia correta de quem foi Acaz para a Bíblia, também é essencial a descrição que nos dá Isaías. Não para apurar a imagem de Acaz mais verdadeira, mas apenas para reconhecer que as duas são coessenciais. A verdade da Bíblia é sinfónica e esta sinfonia mantem-na viva e geradora nos milénios. E, se hoje quiséssemos experimentar compreender ou imaginar, como o humanismo bíblico julgaria a nossa economia, a nossa política, a nossa religião, teríamos necessidade das análises e das histórias que nos relatam as guerras, as conquistas, as intrigas de corte, as razões de estado; mas também teríamos necessidade, e sobretudo, das palavras proféticas de quem sabe ler a intimidade das mulheres e dos homens da história, das palavras de quem, entre os rumos e as feridas dos relatos, das atas dos conselhos de administração e os documentos dos magistrados, sabe ler coisas essenciais para compreender o sentido do que vivemos. Temos de procurar também as páginas sobre o Emanuel, caso contrário faltar-nos-á sempre a página mais importante dos nossos encontros pessoais e coletivos. Estes capítulos do segundo Livro dos Reis são uma escalada para o seu cume: a queda da Samaria, a capital do Reino no Norte, às mãos dos assírios, e a consequente dupla deportação (dos habitantes da Samaria para várias regiões distantes e de muitos povos e tribos, deportados na Samaria, para substituir os hebreus: cap. 17). Não foi uma deportação em massa (um documento assírio fala de 27.290 deportados, numa populaça de 800.000), mas foi um acontecimento social e “religiosamente” devastador, o acontecimento histórico mais dramático, apenas ultrapassado pela destruição de Jerusalém e do seu templo (em 587). A Bíblia lê a queda do Reino do Norte e, depois, a do Sul, como consequência da sua infidelidade a YHWH e idolatria do povo. Os profetas estão, substancialmente, de acordo com esta leitura histórica, embora, neles, o peso da infidelidade “económica e social” seja ainda mais enfatizado.

Há uma frase que encerra, na sua força profético-teológica, o sentido profundo daquele fim: «Foram atrás das coisas vazias e eles próprios se tornaram vazios» (17, 15). A palavra hebraica que o texto utiliza para este “nada” é uma palavra muito estimada e preciosa para a Bíblia: hevel. É a grande palavra de Qohélet: tudo é hevel, tudo é vaidade das vaidades. Tudo é um infinito nada. Mas hevel é também uma das palavras que os profetas (Jeremias) usam para definir os ídolos: os ídolos são vaidade, ninguém, um nada (hevel) que anulam o que os adoram. Seguindo o nada, tornamo-nos nada: a eterna luta entre a fé e niilismo, o niilismo que hoje está enchendo de nada o mundo, tendo-o esvaziado antes – os humanos não sabem resistir muito tempo nos templos vazios. Mas, também aqui, os profetas sabem dizer outras palavras além do nada. Sabem-no ver e compreender melhor que qualquer outro; mas, uma vez visto e compreendido, sabem ir mais além. O nada dos profetas é penúltima palavra. E, assim, enquanto anunciam a queda e condenam a infidelidade, conseguem ver a aurora dentro desta noite escura, a anunciar uma salvação. Amós, Isaías, Miqueias são os profetas do “resto de Israel”, da pequena esperança segura que diz que quanto está a morrer não morrerá para sempre, que há algo de vivo que continuará a história: «Talvez, então, o Senhor, Deus do universo, tenha compaixão do resto de José» (Amós 5, 15). Miqueias. «Eu te reunirei, ó Jacob, todo inteiro; congregarei o resto de Israel» (Miqueias 2, 12). E Oseias: «Como poderia abandonar-te, ó Efraim? Entregar-te, ó Israel? … O meu coração dá voltas dentro de mim, comovem-se as minhas entranhas» (Oseias 11, 8). Poucas coisas na Bíblia (e na vida) são mais maravilhosas que a “profecia do resto”.

Estes profetas, portanto, disseram, em coro, a frase que será o coração da profecia de Jeremias, o cantor da destruição de Jerusalém: acabou uma história, mas não acabou a história. São impiedosos ao anunciar o fim de quanto tem de acabar, são radicais ao anunciar os erros e as causas profundas; mas as suas obras-primas são o Emanuel, a esposa que regressa, as entranhas que se comovem, o resto que voltará. E são-no porque nascem daquela crueldade e daquela radicalidade, sem as quais seriam apenas pobres páginas consoladoras. Sem profetas, não se regressa dos exílios a casa. Porque nos falta a capacidade de ver o resto que regressa enquanto tudo fala de desespero e de morte. Os profetas não veem o resto enquanto o anunciam, porque ainda não existe. A profecia é também o dom de gerar esperanças não-vãs, vendo-as quando ainda estão invisíveis. E, por isso, é bem comum necessário. Isaías apresentou-se ao encontro com Acaz com o seu filho, levando-lhe, como primeira mensagem, o seu nome. O filho de Isaías chamava-se Chear-Yachub, que significa “Um resto voltará” (Isaías 7, 3). Aquele profeta escreve a sua profecia do resto com o nome do filho. Para dizer algo maior que Isaías, aquela palavra devia tornar-se carne da sua carne. É o filho, o resto que volta e salva a nossa história, é o filho que diz que a vida é maior que qualquer morte. Em cada criança que nasce, a esperança vence hevel. A Bíblia sabia isto muito bem; nós temos de o reaprender rapidamente.

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