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A demolição do ídolo

Excessos e desalinhamentos / 7 – Uma dificuldade implacável que atinge pessoas e comunidades vivas

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 14/10/2018

Eccedenze e disallineamenti 07 rid«O ideal da boa-fé é, como o da sinceridade, um ideal de ser em-si. Toda a crença nunca é suficientemente crença, nunca se acredita no que se acredita”.

J.P. Sartre, L'essere e il nulla  [O ser e o nada]

Quem fez da fé o fundamento da própria vida – toda a fé, não apenas a religiosa – quem a fez tornar-se o tema essencial e não um tema entre muitos, vive constantemente no medo de ter fundado a própria vida sobre um engano, de ter construído um edifício admirável sobre nada. Durante muito tempo, este medo permanece latente, sobretudo quando jovens, quando aparece, de vez em quando e, depois, se despede, para nos deixar viver em plenitude, o tempo de encanto, necessário para nos lançarmos em voos loucos. Mas, sob a terra, cresce juntamente com a fé. Até que, numa fase adulta da existência, emerge com uma força invencível. Surpreende-nos, perturba-nos muito, não nos deixa dormir.

Inesperadamente, damo-nos conta que aquele medo era fundado e a possibilidade do nada torna-se experiência real. Tínhamo-nos enganado verdadeiramente. É a experiência da falta de fundamento, do desalinhamento total, da desorientação do exilado. Encontramo-nos numa terra novíssima, habitantes do império que tememos e odiámos durante muitos anos. No princípio, tentamos orientar-nos na nova paisagem, procuramos os mesmos sinais da paisagem do país onde crescemos. Procuramos a torre, o campanário, o relógio nos moldes em que sempre os conhecemos. Não os encontramos e desorientamo-nos. Na realidade, também estão ali, mas não os vemos.

Por outras palavras, damo-nos conta que não tínhamos acreditado em Deus, mas num ídolo. E é aqui que o caminho espiritual se deve tornar experiência de demolição. No dia do chamamento, a voz revela ao profeta Jeremias a sua missão e o seu destino: «Hoje dou-te poder sobre os povos e sobre os reinos, para arrancares e demolires, para arruinares e destruíres, para edificares e plantares» (1, 4-10). No princípio é o plantar e o edificar. O abater, quando chega, vem mais.

A verdade mais importante que é destruída durante o caminho vocacional é a ideia de Deus e do ideal. Uma vocação, antes de ser uma destruição do eu é uma destruição de Deus, um abater a imagem que tínhamos feito dele e em que acreditávamos. A Bíblia colocou, como seu primeiro mandamento, a proibição de fazer imagens de Deus porque toda a imagem de Deus é um ídolo. Mas, já a partir do dia seguinte ao da vocação, cada um de nós constrói a sua própria imagem de Deus e, portanto o seu ídolo. Não o sabemos; por isso, estamos inocentes. A destruição é, então, essencial para poder deixar o tempo da idolatria – na Bíblia, a destruição do templo e o exílio permitiram que aquela fé diferente não se tornasse idolatria.

Talvez esteja aqui um dos muitos significados da frase misteriosa (koan) e paradoxal da tradição Zen: “Se encontrares um Buda no caminho, mata-o”. O “Buda” ao longo do troço adulto do caminho não é só o mestre que nos faz descobrir o caminho espiritual. É também a ideia-imagem de Deus que aquele mestre ou aquela comunidade nos tinha dado no início.

Esta demolição ganha várias formas. Por vezes, a primeira imagem desaparece progressivamente, como uma estátua gasta pelo vento e pela chuva (que nós, porém, continuamos a restaurar). Outras vezes, é um terramoto da nossa terra que as faz implodir e não é raro que fiquem debaixo dos escombros. Outras vezes e são as mais interessantes, mas difíceis de compreender e dizer – somos nós que pegamos nas picaretas e começamos a golpear aquela estátua, porque compreendemos que era um ídolo que, como todos os ídolos, nos estava a devorar, dia após dia. Porque intuímos que, se não destruímos a nossa imagem de Deus, será ela a destruir-nos a nós. As fés são autênticos lugares de libertação se se tornam, um dia, experiências de destruição.

Quando este processo acontece dentro de uma comunidade, dum movimento espiritual ou de uma Organização Movida por um Ideal (OMI), a demolição envolve também a comunidade. Se tínhamos aprendido a primeira ideia do ideal da comunidade que lhe tinha dado concretização e palavras, a necessidade de destruir a imagem de Deus torna-se, inevitavelmente, demolição da comunidade que ma tinha dado e ensinado. Juntamente à imagem de Deus, desaparece também a imagem da comunidade que a tinha guardado – as suas práticas, os seus rostos, as suas orações. Demolimo-la porque tem impressos os mesmos sinais idólatras. Esta destruição – que nunca fica totalmente íntima e se exprime em críticas públicas, sarcasmo, em juízos para com tudo e todos – contém, escondidos, também mensagens preciosas para aquela comunidade, porque lhe mostra a necessidade vital que tem de auto-subversão. Mas, toda a comunidade tem o terror de própria destruição, porque lhe é muito difícil compreender que se não destrói o ídolo do ideal que construiu, está condenada à morte – e, assim, guarda, com todas as suas forças, o ídolo confundido com o ideal.

O elemento determinante que, frequentemente, impede o começo dos trabalhos de demolição é a falta absoluta de garantia que uma nova fé tomará o lugar da imagem que deveremos e queremos demolir. É o terror de perder também Deus, para sempre, juntamente à imagem que tínhamos feito, que leva muitas pessoas que tinham recebido um chamamento espiritual autêntico a não destruir o ídolo e a permanecer para sempre no período idólatra da fé (os ídolos agradam-nos muito porque não nos pedem para assumir qualquer risco).

Para muitos, esta fase do Deus do chamamento tornado o ídolo da vida adulta, acontece em perfeita, absoluta e inocente boa-fé. Para outros, pelo contrário, assume a forma que Sartre chama má-fé (uma palavra que ele usa numa aceção diferente da comum) renunciando ao exercício do risco radical da liberdade e, assim, ficam bloqueados numa espécie de limbo moral, onde são, simultaneamente, crentes e idólatras, fiéis e ateus, verdadeiros e falsos. Os que estão em boa-fé estão num teatro a recitar uma comédia-tragédia, mas estão convencidos que o palco é a vida; os segundos, em má-fé, sabem que estão a recitar um guião que não é a vida, mas não querem descer do palco porque, fora, seriam assaltados e destruídos pela angústia. Porém, quem consegue superar a má-fé (ou, pelo menos, reconhecê-la e decidir querer superá-la) e, assim, realiza esta demolição do ídolo de Deus, encontra-se numa das experiências humanas mais altas e extraordinárias. Precipita-se numa condição muito semelhante – se não idêntica – à do ateu. Percebe – vê-o, sente-o – o nada por baixo de todas as coisas, uma vanitas que, com o seu fumo denso, envolve toda a paisagem interior e exterior. Mas, diferentemente de quem não nunca acreditou, quando a experiência deste nada chega, após uma verdadeira vida fiel, o impacto com a paisagem desta terra desolada é, quase sempre, devastadora.

Na realidade, a experiência radical da ausência de Deus é, eticamente, preferível à idolatria, porque o nada, que chega como maturação da fé, é um salto evolutivo espiritual e antropológico, mas a pessoa que se encontra na experiência, não sente qualquer evolução, apenas uma infinita solidão num mundo povoado de deuses. Experimentam, quase sempre, a mesma desorientação, também os que observam e acompanham quem vive estas experiências, que são os primeiros a amedrontarem-se diante dos primeiros golpes da picareta e, por isso, fazem tudo para lhes tirar a picareta das mãos.

Existem, também, alguns desafios típicos, pouco explorados, embora cruciais – não é fácil explorar estes abismos da vida. Quando esta fase demolidora se desenrola dentro de uma comunidade, o exílio interior acrescenta-se ao exterior. Vive-se com compatriotas que atravessam fases diferentes da vida – alguns em boa-fé, outros em má-fé – e sentimo-nos completamente estrangeiros, dentro de casa. Também porque, nas comunidades, são pouquíssimas as pessoas que ficaram, depois da demolição. Muitos dos que interrompem um caminho comunitário, são os que se encontram esgotados, depois da demolição – talvez porque a primeira estátua era muito imponente e robusta – e não encontraram forças para continuar. Para estes demolidores de ídolos, a vida torna-se, de facto, muito dura na comunidade. As conversas à mesa, as liturgias, as muitas atividades que continuam a fazer, não só já não interessam como provocam uma dor nova. Continua-se a desempenhar a própria profissão, como sempre, numa pobreza de respostas e de luz, na qual se permanece durante anos, décadas. É muito provável que, quando escutamos de alguém palavras diferentes e verdadeiras sobre a vida e sobre o espírito, esta pessoa se encontre nesta fase da vida – mas não o diz, não saberia como dizê-lo, porque não se encontram as palavras (viver e contar o que se vive são duas “profissões” diferentes, sobretudo nalguns momentos da vida).

Mas, se conseguimos chegar ao fundo deste abatimento, pode-se começar uma fase esplêndida da vida, a mais bela e verdadeira de todas. Tornamo-nos verdadeiramente irmãos de todos os homens e mulheres, redescobrimos uma mesma solidária condição humana que precede a fé e a não-fé. Tornamo-nos mendicantes de sentido em relação a todos os que encontramos, nos caminhos, nos livros, na poesia. Tornamo-nos crianças e perguntamos a todos: “porquê?”, e nasce uma nova escuta ignorante e encantada. São muitos os que, sem ter a fé que nós tínhamos, conseguem trabalhar, pôr filhos no mundo, morrer sem se desesperar, amar. E torna-se forte a raiva porque nós, pelo contrário, não conseguimos. Chega-se a amaldiçoar a imagem que nos impediu de aprender a profissão do viver, porque nos descobrimos muito menos competentes nesta arte fundamental que as mulheres e os homens “normais”. Mas, se se tem ainda vontade de ler a Bíblia, começa-se, finalmente, a compreender algumas páginas de Job, de Isaías, alguns salmos, que antes permaneciam estranhos e nos causavam aborrecimento. Sem a experiência de destruição, muita parte da Bíblia e da vida permanecem inacessíveis. E começa-se a agradecer por esta nova epifania da vida e da palavra.

Após uma vida gasta num ambiente povoado por Deus, o desvanecer do sagrado liberta a vista para começar a ver, finalmente, o homem. O lugar desocupado pela religião torna-se um humanismo. Escorraçando os cambistas do templo, as pombas e as cabras dos seus altares, libertou-se a terra para acolher um reino diferente. Por vezes, depois da destruição, volta uma nova fé e uma nova comunidade de fé – que, depois, nos deixam de novo, para nos levar para outros exílios e, ali, nos tornaremos ainda mais humanos. Outras vezes, a oração refloresce, gritando pela dor dos homens e das mulheres. Outras vezes, a fé não volta mais. Entra-se na igreja, não para rezar, mas para esperar que volte e nos surpreenda pelas costas, enquanto estamos sentados num banco a olhar um sacrário vazio. Mas não nos arrependemos de ter destruído o feitiço e não voltaremos atrás por nada do mundo. Permanece a profissão do viver. Permanece a mesma espera de Deus.

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