Essas empresas têm como missão causar impacto positivo na sociedade e no meio ambiente. Mas para que elas sejam mais numerosas, é preciso mudar as regras do jogo
por Airam Lima Jr.
publicado na revista Cidade Nova - edição Dez/2022
O entrevistado é um jovem empreendedor que não fala como os empresários tradicionais. Marcel Fukayama representa um novo jeito de fazer capitalismo, em que o objetivo da empresa não é mais somente dar lucro para os acionistas, mas também levar benefícios para todos os stakeholders, aqueles que, de algum modo, estão envolvidos como negócio, desde os funcionários até a comunidade, o que inclui o meio ambiente.
Dessa proposta, surge o conceito de “empresas de impacto”, aquelas que impactam positivamente a sociedade e o meio ambiente. Fukuyama é um dos fundadores no Brasil – e, hoje, um dos curadores – do Sistema B, um movimento internacional cujo objetivo é difundir esse novo tipo de empresa, certificando aquelas que comprovam cumprir tal meta.
O reconhecimento de ser uma empresa B conta muitos pontos neste momento em que a preocupação com o impacto socioambiental das atividades econômicas é cada vez maior. Vale citar que a maior empresa B do mundo é uma multinacional de origem brasileira: a Natura & Co, a qual reúne, sob outro nome, outras grandes empresas globais de cosméticos, como a The Body Shop e a Avon, adquirida pela Natura.
Aos 38 anos, Fukayama vive em São Paulo, onde tem uma empresa, a Dyn4mo (com 4 no lugar do a, mesmo), uma venture builder ou, em termos mais simples, uma “fábrica de startups”, uma consultoria que apoia novos empreendimentos de impacto – e que é certificada como empresa B. No Sistema B internacional, Fukayama atua na esfera política, pressionando para que as legislações dos vários países reconheçam formalmente as empresas B. Por tudo isso, não é de estranhar que suas respostas tenham várias referências em inglês.
Vamos supor que eu tenha uma confecção de roupas. O que faz a minha empresa ser do Sistema B e outra não?
São as práticas em múltiplas dimensões que a gente avalia: na governança, no modelo de negócio, no impacto ambiental, nos colaboradores e na [relação com a] comunidade. A gente faz um assessment [avaliação] sobre as práticas da empresa nessas dimensões.
“A gente” quem?
O Sistema B Brasil e o B Lab [organização que sustenta o Movimento B internacional e certifica as empresas B]. A gente tem uma ferramenta que se chama “Avaliação de impacto B”. As empresas interessadas em fazer gestão do seu impacto utilizam, de maneira on-line, gratuita e confidencial, esse questionário para medir o impacto dessas práticas. Com base nisso, a gente avalia o impacto dessas práticas e disso sai uma pontuação. Em uma escala de 0 a 200 pontos, se a empresa tiver uma pontuação mínima de 80, está elegível para se certificar.
Mas o que vocês avaliam nessas práticas?
Você pode, por exemplo, ter práticas ambientais, como uma política de gestão de resíduos sólidos.
O modo como você contrata os seus fornecedores como considera os seus stakeholders na tomada de decisão e também a diferença entre os salários mais alto e mais baixo na companhia, a distribuição de gênero na liderança da empresa... Isso tudo são práticas que a gente organiza naquelas cinco categorias que eu mencionei.
E qual é a segunda coisa que faz minha confecção ser uma empresa B?
O modelo de negócio. Essa é uma dimensão de impacto que a gente também consegue identificar nessa avaliação. Nós avaliamos se o fim e o meio do seu produto ou serviço estão direcionados para resolver um problema social ou ambiental complexo.
Por exemplo: se a sua confecção trabalha com egressos do sistema penitenciário e a renda gerada é para a manutenção dessa cadeia produtiva, para a geração de emprego e renda dessa comunidade, fica claro que, para a sua empresa, o impacto social está no coração, está na intencionalidade do seu negócio. Isso é o modelo de um negócio de impacto.
Isso vale para empresas maiores, menores e de outros setores também?
Sim. O questionário de avaliação é aplicável a mais de 150 setores distintos. Hoje, a maior parte de empresas B, eu diria 40%, são de serviços, mas a gente tem outros setores: bens de consumo, produção, fábrica...
De onde vem essa história de empresas B?
Tudo começou nos Estados Unidos, com três empresários que estavam sempre muito preocupados em medir o impacto das práticas deles de desenvolvimento territorial, quidade, diversidade, inclusão, cuidado com o meio ambiente.
Em 2006, eles desenvolveram essa metodologia para poder identificar quais eram as empresas comprometidas em ser melhores para o mundo, e criaram uma certificação, chamada B Corp ou Certified B Corporation. A letra B vem de benefit (“benefício”), em uma ideia de que empresas podem gerar benefícios coletivos.
E como você e o Brasil entraram na história?
Em 2010, eu tinha uma empresa de educação e estava passando por um processo de investimento e de impacto com um fundo, e queria medir a intencionalidade desse fundo. Foi assim que eu conheci a ferramenta criada pelo B Lab. A minha empresa foi uma das primeiras companhias B certificadas na América Latina. Só que eu pensei: “O B Lab não pode ser uma organização americana, apenas. Esse é um movimento global”. Então, eu propus criar o B Lab Brasil, mas eles responderam que estavam criando, com outros empreendedores da América do Sul, uma organização chamada Sistema B, que estava sendo lançada no Chile, na Argentina e na Colômbia. A gente se juntou e lançou aqui no Brasil também, em 2013.
De alguma maneira, eu fiz parte do processo de consolidação do Sistema B e liderei a expansão na América Latina para dezenove países.
Hoje, eu tenho um papel global em policy, que é a nossa estratégia de mudança nas regras do jogo.
No Brasil, muitas empresas lutam para sobreviver. Ser uma empresa B traz mais possibilidades de sobrevivência ou, em outras palavras, melhores resultados?
Eu diria que sim. Eu acho que a pandemia mostrou que empresas que atuam com impacto positivo na sua cadeia de valor, no ambiente de trabalho, no modelo de negócio são mais responsivas, ou seja, respondem mais rápido, com inovação, às mudanças de conjuntura e de contexto, e são também mais resilientes, conseguem passar por cenários de crise e por transformações como as que a gente está passando, por conta da desigualdade, da emergência climática, da crise nas democracias ocidentais e tudo mais...
Vocês entendem que, para o Sistema B funcionar, não basta só mudar as empresas, mas é preciso também mudar as regras do jogo. Por quê?
Hoje, de acordo com o Banco Mundial, há 125 milhões de empresas no mundo. O mapa de empresas do Ministério da Economia mostra que o Brasil tem 19 milhões. Atualmente, nós temos 250 empresas B certificadas no Brasil e 6 mil no mundo. Vamos dizer que a gente faça um trabalho muito bom e consiga triplicar esse número no ano que vem. Já seria um milagre sair de 6 mil para 18 mil empresas, mas que mudança efetiva a gente vai fazer com esse número? Muito pouco. É preciso reconhecer isso. Então, o que a gente precisa fazer para escalar uma mudança de estrutura, de comportamento e de cultura empresarial? Precisa mudar a regra do jogo: mudar legislações, regulações e autorregulações de mercado para influenciar a mudança no setor empresarial e no mercado de capitais.
Por isso,[propomos] essa estratégia, que a gente chama de global policy, que basicamente é uma maneira de a gente influenciar uma mudança regulatória, para que, de maneira voluntária ou mandatória, dependendo do mercado, a gente possa mudar esse comportamento.
Essa mudança nas regras do jogo consiste no quê, em termos práticos?
Uma proposta se chama benefit corporation, que é uma qualificação da empresa.
Por exemplo, você poderia abrir no Brasil uma empresa individual, uma sociedade limitada ou uma sociedade anônima, e qualificar essa pessoa jurídica como uma sociedade de benefício, que é uma empresa que atua com propósito, responsabilidade e transparência. Essa é uma proposta de política pública que nós já aprovamos em cinquenta jurisdições distintas – em quarenta estados americanos, mais Itália, França, Canadá, Colômbia, Equador, Peru, Uruguai, Panamá e, no mês passado, na Espanha. No Brasil, nós temos uma proposta de sociedades de benefício tramitando no Senado: é o Projeto de Lei n.3284/21.
Com a aprovação desse projeto, o céu é o limite: você pode ter incentivos, entrar nas compras públicas... Enfim, o importante é institucionalmente reconhecer que aquele segmento existe.
E existe outra ação, além de mudar a lei?
Outro exemplo que eu dou é de autorregulação, no mercado de capitais. A gente está com uma proposta chamada benefit index, um novo índice nas bolsas de valores que têm ações de empresas em jurisdições onde a lei da sociedade de benefício já foi aprovada.
Mas no Brasil essa lei ainda não existe...
Em jurisdições como a do Brasil, onde a lei ainda não foi aprovada, as empresas têm que adotar três elementos: primeiro, uma mudança no estatuto para incorporar ou vincular o dever fiduciário dos administradores com o impacto positivo; segundo, a responsabilidade com os stakeholders, que precisam estar presentes na governança; terceiro, o compromisso com a transparência – as empresas precisam usar uma ferramenta de terceira parte independente para fazer a gestão do seu impacto. Uma vez feito isso, a empresa está elegível a ser parte desse índice. Nós já apresentamos a proposta desse índice para as bolsas de São Paulo, Buenos Aires, Milão e Tóquio.
No fim das contas, a ideia do Sistema B é uma proposta de reforma do capitalismo?
Eu acho que sim. Eu diria que é com a visão de construir uma economia de stakeholders, ou seja, uma economia em que a gente possa gerar prosperidade compartilhada para todas as partes interessadas e construir um sistema econômico inclusivo, equitativo e regenerativo.
Quando a gente fala em “regenerativo” é porque não dá mais tempo para conservar ou preservar; a gente precisa regenerar. Essa é uma visão estruturalmente importante, e qualquer empresa com fins lucrativos pode fazer parte disso.