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Os pobres não são malditos

O exílio e a promessa / 6 – A nova e verdadeira festa é onde parece não haver qualquer “mérito”

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 16/12/2018

Ezechiele 06 rid«E talvez tenhamos paz
quando tudo estiver perdido
e sentirmos inúteis as palavras
e estes encontros que nos iludem.

Então, a angústia será
ter descoberto – demasiado tarde –
esta perdida existência…».

David Maria Turoldo, de O sensi miei [Oh sentidos meus]

As vigílias marcam o ritmo das festas e das suas esperas. É o tempo em que o dia diferente se prepara e amadurece, quando se forma e cresce o desejo. As crianças são os grandes especialistas das vigílias – dos aniversários, dos primeiros dias de escola, do passeio. Elas sabem que, na “aldeia”, o sábado é um dia bonito porque será seguido por um dia ainda mais bonito. Porque sabem que as festas são verdadeiras, que não são apenas ilusões de um desejo estrangulado no dia em que se realiza, porque verdadeiros são os pais, os professores, os companheiros, porque são verdadeiros dons. É a verdade da festa que torna verdadeiros o desejo e a espera, sua vigília. Uma inovação do nosso tempo é a invenção de vigílias sem festa porque, na era das festas marcadas pelo negócio, ficam só as vigílias. Não sabendo, coletivamente, quem e o que festejam verdadeiramente, permanecemos numa sucessão contínua de “sábados da aldeia”. À vigília de Natal sucederá a vigília das vendas e, depois, a de S. Valentim e assim por diante, durante todo o ano, onde novas vigílias nos fazem esquecer a tristeza das festas negadas. E o ano voará velocíssimo, porque com o tempo diferente da festa roubado, que estaria ali para nos fazer saborear um pedaço de eternidade – mesmo que vivamos mais anos que os nossos avós, estamos a viver dias muito mais breves que eles.

Se alguém quer reencontrar o sentido da festa e da vigília (e é preciso fazê-lo depressa, porque uma cultura que não conhece a verdade do “dia de festa” não conhece a verdade da vida e da morte), deve procurá-lo entre os pobres, porque é lá que a festa continua a viver junto à sua vigília não-vã. Antes, porém, temos de nos aproximar do sentido da pobreza e dos pobres, e libertar-nos das nossas maldições. E, também aí, os melhores mestres serão os profetas.

«Foi-me dirigida a palavra do Senhor, nestes termos: “Filho de homem, é a teus irmãos, a teus familiares e a toda a casa de Israel que os habitantes de Jerusalém dizem: ‘Eles estão longe de Deus; a nós é que o país foi dado em herança’”» (Ezequiel 11, 14-15). O povo que escapou à primeira deportação babilónica lia o exílio dos seus compatriotas como maldição de Deus. O afastamento da pátria e do templo santo era visto como punição divina, como consequência dos seus pecados. A soberba religiosa alimentava a falsa segurança de ser a parte eleita, os verdadeiros proprietários da terra e, assim, os deportados pelos babilónios tornavam-se os deportados de YHWH. Na história das civilizações sempre nasceu, quase invencível, a necessidade de encontrar uma justificação sobrenatural para as suas desventuras e, sobretudo, para as desventuras dos outros. A mais comum, porque a mais simples, era oferecida pela lógica económica: quem hoje sofre está a pagar uma dívida por alguma culpa amadurecida ontem e quem goza está a recolher os frutos dos seus méritos. Os ricos encontravam-se, assim, num duplo paraíso (o da terra e o do céu), e os pobres viviam num duplo inferno, prisioneiros dentro de uma perfeita armadilha, sem esperança de libertação. As meritocracias sempre tiveram necessidade (e ainda a têm) de pobres merecedores da sua desventura, de um escabelo sobre o qual os eleitos pudessem apoiar os pés para subir ao seu céu.

Os profetas, por vocação, põem em crise estas fáceis e banais religiões do mérito e da culpa e revelam-nos uma outra lógica, mostram-nos uma outra ideia de pobreza e de justiça: «Assim fala o Senhor Deus: “Sim, afastei-os entre as nações e dispersei-os para os países estrangeiros; e a custo fui para eles um santuário, nos países para onde eles foram”» (11, 16). Também Jeremias, irmão e mestre de Ezequiel, o tinha profetizado: o cesto de figos bons não é o que permaneceu na pátria, mas o deportado para Babilónia (Jeremias 24, 1-2). A profecia descreve uma outra teologia e, quando esta falta, ficamos prisioneiros de esquemas ideológicos que têm como único objetivo a justificação da nossa condição de salvos e da nossa indiferença.

Esta dinâmica repete-se, frequentemente, também nas nossas comunidades ideais e espirituais. Uma parte ou alguém encontra-se exilado, deportado em terras estrangeiras, arrastado por algum império ou demónio revelados demasiado fortes para opor resistência. Quem permanece em casa sente a necessidade de fazer uma leitura religiosa da saída dos outros e da sua permanência; e, assim, para se sentir seguro e fiel, acaba, por vezes em boa-fé, por condenar quem saiu. Separa-se moralmente deles, deixa-os no seu monte de estrume e, depois, procura, como os “amigos” de Job, convencer-se e convencer que por detrás daquela desventura deve haver alguma culpa que permaneceu escondida. O profeta, pelo contrário, continua o cântico de Job e repete aos deportados, a quem permanece em casa, a nós: «Estou inocente; e, se nesta história há algum culpável, é encontrado na vossa ideia errada de Deus e, portanto, da vida». Os profetas dão voz à parte amaldiçoada do mundo e recordam-nos que se há um Deus verdadeiro, este deve ser procurado, antes de mais, nos montes de estrume, nos campos de deportados, entre os exilados, entre os rejeitados e os amaldiçoados. É aí que espera e, por vezes, nos encontra, talvez depois de o ter procurado e não o ter encontrado nos lugares onde pensávamos que estivesse, e quando tínhamos perdido toda a esperança (as experiências espirituais maravilhosas são as que chegam quando estávamos seguros que não chegaria mais nada).

Mas Ezequiel diz-nos algo ainda mais forte e revolucionário: YHWH promete aos deportados que será para eles “um santuário”. Numa cultura religiosa antiga, onde a proteção dos deuses era limitada ao território nacional e onde a saída da terra significava saída da área da ação da divindade, Ezequiel não diz apenas que YHWH está vivo e atua também no exílio, mas que será a sua presença a substituir o santuário que já não têm. A condição objetiva do exílio, a falta do templo e de muitas dimensões do culto religioso, permite àquele “resto” rejeitado dar um salto qualitativo na fé. Intuíram, graças aos profetas, que Deus não podia estar confinado a um lugar, que não habita apenas nos lugares sagrados, porque a sua casa era a terra inteira, não apenas a terra da promessa. Deus é maior que o culto religioso, com que O veneravam. É diferente e maior que os nossos sacrifícios, que as nossas liturgias, porque é um Deus leigo (que vive no meio do povo). Uma mensagem enorme, também nos dias de hoje, mas extraordinária naquele povo do templo diferente e único. “Serei o teu santuário”: quantas vezes, pessoas rejeitadas, comunidades exiladas sentiram ecoar como verdadeira, na sua alma, esta esplendida promessa; e ali, no meio de divindades estrangeiras, perdidas e desesperadas, compreenderam que nada faltava, que não eram amaldiçoadas nem abandonadas, mas que foram conduzidas ao deserto para celebrar uma nova aliança, uma nova festa, uma nova Páscoa. E o céu abria-se, desciam os Elohim e começava o paraíso dentro dos infernos.

O exílio de Israel foi um regresso à tenda móvel do arameu errante, ao Deus nómada como o seu povo, que, mudando-se, se pode fazer companheiro de caminho de qualquer homem e mulher da terra, de todos “os da rua”. As grandes crises tornam-se, por vezes, epifanias de uma espiritualidade mais verdadeira, de uma religião mais elevada que o teto dos templos, regressos à pobreza de uma tenda onde escutar palavras diferentes e infinitas. Como aconteceu naquela prisão alemã, no fim da segunda guerra mundial, quando o profeta do nosso tempo, pouco antes de ser fuzilado, por ter seguido a voz até ao fim, foi capaz de escrever algumas palavras maiores que a sua teologia, geradas pelo abismo do seu exílio: «O “cristianismo” foi sempre uma forma (talvez a verdadeira forma) da “religião”. Mas, se um dia (…) os homens se tornarem radicalmente não religiosos, que significa, então, todo este “cristianismo”? Serão arrancados os alicerces de todo o nosso “cristianismo” como tem sido até gora, e nós, “religiosamente”, poderemos alcançar apenas algum “cavaleiro solitário” ou alguma pessoa intelectualmente desonesta? Deverão ser estes os poucos eleitos? Deveremos lançar-nos zelosos, irritados ou mesmo arrogantes sobre este equívoco grupo de pessoas para vender a nossa mercadoria? (…) Como pode Cristo tornar-se o Senhor também dos não-religiosos? Se a religião é apenas uma veste do cristianismo, o que é, então, um cristianismo não-religioso?» (D. Bonhoeffer, «Resistência e rendição»). Nestas palavras, que nos deixam também sem folego, estão também Jeremias, Ezequiel e toda a Bíblia, cuja profunda meditação tinha acompanhado e alimentado Bonhoeffer, antes e durante a prisão.

Também nós podemos ver a condição de tantos exilados sem templo, dispersos por terras dos deuses diferentes, e condená-los como malditos, culpáveis e merecedores da sua condição de sem Deus – o que é o nosso tempo se não um grande exílio de massa do templo? Mas também podemos repetir as palavras de Ezequiel. Podemos e devemos dizer se queremos estar da parte dos habitantes de Jerusalém e condenar os exilados ou com os profetas e contar uma história diferente, a que vê no nosso grande exílio uma “presença” para além do templo. Podemos maldizer o nosso mundo, mas podemos também anunciar-lhe uma salvação. As religiões e as comunidades podem ser amigas dos pobres, foram-no muitas vezes e são-no ainda quando sabem despir as vestes meritocráticas desenhadas pelos homens e, depois, aplicadas às divindades, sem lhes pedir autorização.

Os profetas continuam e ser guardas do homem e guardas de Deus. Nós, teimosos, tentamos, todos os dias, manipular Deus e os homens; e os profetas, mais teimosos que nós, continuam a guardá-los.

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