Deus e os pobres, sem álibi

À escuta da vida / 2 – Com Isaías, para além da culpa e dos sacrifícios rituais

por Luigino Bruni

publicado no jornal Avvenire  no dia 03/07/2016

Spighe di grano rid"“Não habitareis mais em conventos de pedra / Para que o coração não seja calhau! / E também vós, homens, não façais / Garras das vossas mãos. / Livres ou monges, voltai / Sem alforge, nus / Os pés sobre o asfalto. / Seja o mundo / o vosso mosteiro / Como outrora / Era a Europa”

David Maria Turoldo, O sensi miei… Poesie 1948-1988

A primeira estratégia adotada pelos poderosos para ignorar as razões do pobre foi – e continua a ser – pensar e dizer que ele é culpado, atribuir-lhe a culpa da sua pobreza. Isaías condena o povo e as suas elites, mas não condena os pobres. Numa cultura onde o pobre era também considerado culpado, os profetas (assim como Job) dizem exatamente o contrário: a dor dos pobres é a consequência das culpas dos chefes, da idolatria e da falsa religião dos reis e dos sacerdotes. Os pobres são vítimas da injustiça de um povo infiel, mas não são culpados.

Para compreender a força revolucionária da crítica implacável e radical de Isaías, temos de ter presente que o ambiente em que Isaías trabalhava e vivia era o templo de Jerusalém. Os sacerdotes, que celebravam os sacrifícios condenados pelo profeta, eram os seus conterrâneos muitíssimo próximos, pessoas com as quais estava em contacto todos os dias. Os sacrifícios continuavam, enquanto Isaías os criticava, e os pobres permaneciam sem socorro. O destino do profeta está em ter de anunciar a estupidez das ofertas de touros e cordeiros, enquanto o seu sangue escoa debaixo dos seus pés. Se a dor pelo seu próprio insucesso, ou a preocupação de ofender os seus ouvintes, tivessem travado a palavra de Isaías e dos outros profetas, não teríamos, hoje, palavras grandes para continuar a proclamar a inutilidade de alguns dos nossos “sacrifícios” e para denunciar as idolatrias das religiões e dos ateísmos do nosso tempo. Os profetas amam-nos porque, por vocação, não cederam nada às nossas autoilusões consoladoras. Os ídolos são rufiões e buscadores de rufiões; os profetas nunca.

Prosseguindo a leitura de Isaías, começamos a descobrir a grande riqueza antropológica e teológica que se esconde dentro da crítica radical aos sacrifícios que abre o seu livro. As ofertas no templo e os seus comércios são um caminho errado porque o caminho certo é outro, o da justiça e, por conseguinte, as ações em favor dos pobres: «Procurai o que é justo, socorrei os oprimidos, fazei justiça aos órfãos, defendei as viúvas» (1, 17). Agir em favor dos oprimidos, dos órfãos, das viúvas, dos estrangeiros, é a única possibilidade para uma vida religiosa. A condição do pobre dentro das nossas comunidades de fé é o primeiro critério para a justiça e também o primeiro critério para a vida religiosa. «Como se tornou numa prostituta a cidade fiel! (…) Andam todos à procura de regalias e de recompensas. Não defendem o direito dos órfãos nem se interessam da questão das viúvas» (1, 21-23). Para Isaías, a procura da justiça e, portanto, a condição dos pobres, é, antes de mais, uma questão teológica, não assistencial.

Embora os modos de amar os pobres sejam muitos, pelo menos tantos quantos os rostos da pobreza e dos pobres, há experiências religiosas que esquecem os pobres, a ponto de os não ver e chegar a pensar que desapareceram das cidades opulentas. E essas experiências religiosas são, de fato, idolatrias. Quando encontramos verdadeiramente a voz do Deus bíblico, somos chamados a deixar a nossa terra e ir para outros lugares, a sair do nosso “já” para um “ainda não”, a abandonar as nossas seguranças para nos ocuparmos do outro, de qualquer um. Eis porque a solicitude pelas pobrezas é a condição necessária para a fé: é o primeiro “ainda não” em direção ao qual nos devemos mover, é o sinal que não reduzimos Deus a um bem de consumo. Podemo-nos tornar idólatras também com os pobres, mas não se segue o Deus bíblico sem os pobres.

Por isso, no discurso de Isaías, encontramos, em primeiro lugar, o pecado contra os pobres e só depois a condenação da idolatria: as religiões e as comunidades espirituais sem pobres são já idolátricas. As pessoas e as comunidades que frequentam os templos, que rezam, cantam e louvam, mas que perderam o contato com os pobres, que não os abraçam nem os convidam para as suas casas, que não fazem tudo para mudar as leis e melhorar as condições dos mais pobres, já estão dentro dum culto idolátrico, mesmo que o não saibam. O único caminho que nos conduz para longe dos ídolos é o percorrido juntamente com os pobres. O Deus bíblico está ali; só ali O podemos encontrar. Está sempre constrangido e desconfortável nos templos que lhe construímos; fica lá pouco tempo e com relutância, porque ama as periferias e o espaço aberto.

Eis porque, nos primeiros capítulos de Isaías, o discurso sobre os sacrifícios se entrelaça, frequentemente, com o dos pobres e dos ídolos. «Tu, ó Deus, rejeitaste o teu povo, a casa de Jacob, porque está cheia de magos, de agoureiros como os filisteus (…). A sua terra está cheia de prata e de ouro, e os seus tesouros não têm fim. A sua terra está cheia de cavalos, e são inumeráveis os seus carros. É uma terra cheia de ídolos; prostram-se diante da obra de suas mãos, que os seus dedos fabricaram» (2, 6-8).

Idolatria, magos, adivinhos, procura da riqueza e abandono dos pobres são faces do mesmo prisma pseudo-religioso. Ontem e hoje, são muitos os crentes que esquecem os pobres e enchem os templos e, talvez, à saída leem o horóscopo no jornal ou compram uma raspadinha. Isaías diz-nos simplesmente, e sem compromissos, que estas práticas religiosas são cultos idolátricos. Adorar artefatos, celebrar ritos à fertilidade (1, 29), procurar ouro, não cuidar dos pobres são a mesma coisa; são expressões da mesmíssima prostituição religiosa e social.

A idolatria não é exterior à religião, é a sua principal doença autoimune, que ela própria gera quando perde o contato com a profecia. Isaías acrescenta dois elementos à crítica bíblica da idolatria, elementos fundamentais para qualquer fé e para qualquer idolatria: o ídolo insinua-se também dentro dos templos da religião (com os sacrifícios) e afasta-nos dos pobres. As religiões sempre abundaram em idolatrias, sobretudo nos tempos de crise religiosa, quando, perante a dificuldade de compreender e de repetir as antigas palavras da fé bíblica, em vez de reler os profetas, se procuram oráculos e adivinhos, dentro e fora dos templos, que prometem salvações mais simples. Mas, ontem e hoje, “mercadores idólatras” são sempre os mesmos: abundância de cultos e distância do grito do pobre, fugas à procura de emoções e de consolações baratas. As idolatrias são experiências de consumo, porque se constrói o artefacto com a esperança de satisfazerem as nossas necessidades. Os ídolos são muitos e populares, porque são respostas pontuais aos gostos dos consumidores.

O primeiro dom que a Bíblia – e, nela, sobretudo os profetas – nos fez ao longo dos milénios é a proteção da produção idolátrica, que sempre foi, e continua a ser, a experiência “religiosa” mais comum, debaixo do sol. É muito raro que, quando pronunciamos a palavra “Deus”, a nossa voz não atinja a outra parte, mas apenas o eco de si mesma, vindo dos nossos artefatos. A Bíblia é um mapa que nos guia em regiões espirituais e humanas, onde é possível (embora nunca certo) que a nossa voz orante e o nosso grito sejam acolhidos por Alguém diferente de nós mesmos, diferente dos nossos artefatos, ou dos nossos amigos.

A Bíblia e os profetas sabem muito bem, porque o aprenderam na dor da fidelidade à verdade da palavra, que os homens são construtores naturais de ídolos, que, de vez em quando, e com boa-fé, também chamam JHWH, Jesus, Alá. Sabem-no muito bem e, por isso, continuam a dizê-lo de muitos modos, embora sabendo que não nos agrada ouvi-lo, que não conseguimos sequer compreendê-lo, demasiado habituados como estamos aos nossos ritos idolátricos consoladores. Ajudam-nos, não porque nos dizem quem é e como foi feito o verdadeiro Deus (a Bíblia é também um grande silêncio e uma grande ausência de Deus), mas, sobretudo, dizendo quem e que coisa Deus não é. Ensinando-nos a individuar os ídolos à nossa volta e dentro de nós. A Bíblia é um grande exercício de anti-idolatria porque o Deus bíblico não fez do homem o seu ídolo. O homem foi criado à “imagem de Elohim”, mas não se tornou o ídolo de Deus. Artefato, mas não ídolo. E podia sê-lo, dada a sua beleza, tendo-o feito pouco “inferior aos Elohim” (Salmo 8). O Deus bíblico está enamorado do homem, a ponto de sonhar tornar-se como ele. Mas tendo-o distinguido-se, não o tornou o seu ídolo. Um preço pago muito caro porque, por não se ter tornado o ídolo de Deus, Adão foi colocado na liberdade de evoluir, de mudar, de pecar, até mesmo de O negar e renegá-lo, ou de o transformar num bezerro de ouro, de o pregar numa cruz. Um preço altíssimo e um valor infinito. Quando é que, verdadeiramente, nos daremos conta disso?

A imensa dignidade do homem faz com que as insídias mais profundas das fés se aninhem mesmo no coração das religiões, não fora delas. Não começaremos nunca a verdadeira vida espiritual se um dia – abençoado dia – não nos dermos conta que passámos a vida falando com nós mesmos ou com um ídolo, embora estivéssemos convencidos de falar com Deus. Nesse dia, pode começar uma vida nova, num grande silêncio e num grande vazio, onde se descobrem e se agradecem os profetas, nos tornamos seus companheiros de viagem e se aprende uma outra fé, porventura não idolátrica.

Nós continuamos a produzir ídolos e continuamos a chamar-lhes Deus. E os profetas a repetir-no-lo. É assim que nos amam.

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