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O número um é abençoado

Profecia é história / 13 – Nenhum grupo supera a pessoa em dignidade; quando muito, pode igualá-la

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 01/09/2019

«Todos os corpos juntos, e todos os espíritos juntos, e todas as suas produções não valem um mínimo movimento de caridade. Este é de uma ordem infinitamente mais elevada»
Blaise Pascal,  
Pensamentos

O duelo no Monte Carmelo, entre Elias e os profetas de Baal, recorda-nos, em contraluz, que a verdade não coincida com a vitória. E que quem anuncia verdade, chama à escolha, nunca à idolatria.

Neste relato, entre os mais conhecidos da literatura religiosa antiga, o número abençoado é o número um. Com Elias, sozinho contra as centenas de profetas de Baal, e Abdias, único salvador de profetas, a Bíblia diz-nos que, em muitas crises tremendas, a salvação chega porque permaneceu um justo que salva a todos. Nalguns momentos determinantes, a massa crítica é um. Noé, Abraão, Moisés, os profetas, Elias, Abdias, Maria, Jesus: por muito importante e belo que seja o “nós”, a Bíblia exalta também o “eu”. O nós não salva ninguém se, no seu coração, não há, pelo menos, um que obedece a uma voz e age livremente. Um eu justo é o fermento da boa massa do nós. Esta é a raiz do princípio personalista no centro do humanismo ocidental, que hoje, no fascínio exercido por novos nós, continua a repetir-nos que nenhum grupo supera, em dignidade, a pessoa individual; quando muito, pode igualá-la. No “cálculo da dignidade”, nos grupos humanos, as regras da aritmética não valem. Este valor não aumenta com a soma, porque a primeira parcela já tem um valor infinito – aqui um mais um dá sempre e só um.

Durante uma carestia tremenda e longuíssima, enquanto uma rainha sanguinária está a exterminar os profetas de YHWH, um homem salva-os: «Era então muito grande a fome na Samaria. Acab mandou chamar Abdias, intendente do seu palácio; Abdias era muito temente de YHWH. Assim, quando Jezabel matou os profetas de YHWH, Abdias acolheu cem profetas e escondeu-os em duas cavernas, cinquenta numa e cinquenta noutra, e alimentou-os com pão e água» (1Rs 18, 2-4). Abdias é um amigo dos profetas. Como o etíope Ébed-Mélec, o eunuco que salvou Jeremias da cisterna (Jr 38), também agora encontramos um homem, um “intendente”, que salva os profetas da morte. Também a história das religiões e das civilizações conhece esta categoria de justos, estes goel. Os profetas têm muitos inimigos; mas também têm alguns amigos e “salvadores”. Hospedam-nos na sua casa, em Betânia, escondem-lhos, cuidam deles, acreditam neles quando todos os abandonam. Os profetas têm estes amigos, pelo menos um, pelo menos uma, que se torna o pedaço de pão e o copo de água para não morrer na travessia dos desertos. Por vezes, são os pais, uma irmã. Nem sempre são discípulos dos profetas; por vezes, são seus amigos. Um amigo de profeta vale mais de mil discípulos.

Abdias encontra Elias e o dote com que se apresenta são os cem profetas que salvou: «Eu escondi cem de entre eles, cinquenta numa caverna e cinquenta noutra, e os alimentei com pão e água» (18, 13). Elias foi ao seu encontro: «Abdias reconheceu-o e prostrou-se de rosto por terra, dizendo: “Meu senhor, és tu Elias?” “Sou eu! Vai dizer ao teu amo que cheguei”» (18, 7-8). Abdias tem medo. Elias tranquiliza-o e ele vai: «Partiu, pois, Abdias para junto de Acab e avisou-o» (18, 16). Elias encontra, finalmente, Acab. E entramos numa das páginas mais conhecidas e tremendas da Bíblia: o desafio, o ordálio do Monte Carmelo, entre Elias e quatrocentos profetas de Baal. Uma cena poderosa e épica, que os faz reviver, em direto, um excerto da religião dos povos acaicos, entre magia e fé.

«Então Acab mandou chamar todos os filhos de Israel e reuniu os profetas no monte Carmelo. Elias aproximou-se de todo o povo e disse: “Até quando andareis a coxear dos dois pés? Se o Senhor é Deus, segui-o; mas se Baal é que é Deus, então segui a Baal!”» (18, 20-21). Elias propõe um duelo entre YHWH, o Deus de Israel, e Baal, o deus local fenício-cananeu. Do Lado de Baal estão centenas de profetas; do lado de YHWH está só Elias. Uma luta desigual, portanto; um outro David contra um outro Golias. Mas, também aqui, a vitória não é uma questão nem de forças nem de números. É a qualidade, não a quantidade, o princípio ativo destas vitórias. Além disso, do relato compreende-se, de facto, que o desafio não é entre dois deuses, ambos vivos, mas entre Deus e o nada. Esta vitória de YHWH é uma das primeiras atestações monoteístas de Israel. «Dêem-nos, então, dois novilhos; eles escolherão um, hão de esquartejá-lo e o colocarão sobre a lenha, sem lhe chegar fogo. Eu tomarei o outro novilho, colocá-lo-ei sobre a lenha, sem, igualmente, lhe chegar fogo. Em seguida invocareis o nome do vosso deus; eu invocarei o nome de YHWH. Aquele que responder, enviando o fogo, será reconhecido como verdadeiro Deus”» (18, 23-24).

Os profetas de Baal são os primeiros a preparar o seu altar e esperam que Baal, o deus dos relâmpagos, faça arder a lenha para o sacrifício. E, depois, «puseram-se a invocar o nome de Baal, desde manhã até ao meio-dia, gritando: “Baal, escuta-nos!” Mas nenhuma voz se ouviu, nem houve quem respondesse» (18, 26). Não se ouviu nenhuma voz… Volta a observação belíssima que acompanha toda a Bíblia: o Deus verdadeiro é o Deus da voz. YHWH fala, chama, sussurra. Os ídolos são falsos porque não têm voz, não têm fôlego. O frenesim profético cresce, mostrando-nos pormenores interessantes daqueles ritos antigos: «Gritavam em voz alta, feriam-se, segundo o seu costume, com espadas e lanças, até ficarem cobertos de sangue» (18, 28). O fogo não se acende. Baal não responde. Elias ironiza e zomba deles: «Gritai com mais força! Talvez esse deus esteja entretido com alguma conversa! Ou então estará ocupado, ou anda de viagem. Talvez esteja a dormir!» (18, 27). Nesta provocação, Elias “esquece-se” que muitos salmos são um grito para “acordar” Deus e que a primeira oração coletiva da Bíblia foi um grito de escravos para que YHWH, distraído, se recordasse da sua promessa (Ex 2). Também os profetas maiores, na arena da luta religiosa podem usar contra o adversário as palavras mais humanas e mais belas aprendidas dentro de casa. Como nós.

Depois, chega a vez de Elias «Tomou doze pedras… Erigiu um altar ao nome de YHWH… Dispôs a lenha sobre a qual colocou o boi esquartejado... Elias disse: “YHWH, Deus de Abraão, de Isaac e de Israel, mostra hoje que és Tu o Deus em Israel… Responde-me, Senhor, responde-me! Que este povo reconheça que Tu, Senhor, é que és Deus, aquele que lhes converte os corações”. De repente, o fogo do Senhor caiu do céu e consumiu o holocausto, a lenha, as pedras» (18, 31-38). Impressiona esta essencialidade sóbria da oração de Elias, se comparada com a espetacularidade barroca dos profetas de Baal – as liturgias excessivas e emocionais são, quase sempre, sinal de fés veladamente idolátricas. Elias vence o desafio e o povo exclama: «YHWH é Deus! YHWH é Deus!» (18, 39). Elias celebra a vitória fazendo degolar, um a um, os quatrocentos profetas de Baal: «Disse-lhes então Elias: “Prendei agora os profetas de Baal; não deixeis fugir um só deles!” Prenderam-nos, e Elias levou-os ao vale de Quichon, onde os matou» (18, 40). Um epílogo tremendo, como toda a cena.

O ordálio, o “juízo de Deus”, é uma prova cujo êxito era interpretado como manifestação direta da vontade dos deuses. Estava muito difundido na antiguidade e em muitas culturas. Na Europa, os ordálios foram introduzidos, sobretudo, pelos povos germânicos; na Itália, pelos Lombardos e, durante muitos séculos, também tolerados pela Igreja. No ordálio – do fogo, dos venenos, dos metais fundidos… - quem saía ileso da prova era considerado justo e/ou inocente. O facto era constituído como vontade divina. Portanto, o mais forte no duelo, ou o mais manhoso a caminhar sobre o fogo, era abençoado por Deus e portador duma mensagem sua. E, assim, os fortes tornavam-se ainda mais fortes, os débeis ainda mais débeis. Algo de muito semelhante à religião económico-retributiva, que ligava à riqueza a bênção de Deus e à pobreza a maldição, que tornava os ricos duplamente abençoados e os pobres duplamente amaldiçoados. A Bíblia teve que lutar muito para se libertar desta visão arcaica e “naturalista” da fé, o que conseguiu apenas em parte. Procurou mostrar-nos que os “milagres” não são, de per si, provas da verdade da fé, mas apenas sinais imperfeitos e sempre parciais. Porque também os falsos profetas sabem fazer milagres; também os magos do Egipto simulavam as pragas e Simão, o Mago, com os seus gestos “surpreendia” os habitantes da Samaria (Atos dos Apóstolos, cap. 8). Jeremias era combatido e perseguido pelos falsos profetas que invocavam o milagre que os salvaria – que não aconteceu.

Foi preciso o Exílio para compreender que YHWH não é verdadeiro porque vencedor, que continua a ser o Deus da promessa, mesmo quando derrotado. Mas nós, apesar de toda a Bíblia, dos Evangelhos, de S. Paulo, apesar do não-milagre da cruz e o não-ordálio dos cravos e do madeiro, somos muito tentados a imitar Elias, a pensar que o nosso Deus é verdadeiro porque é vencedor e, depois, degolamos os perdedores. O milagre do fogo no Monte Carmelo não prova que YHWH é Deus. Talvez prove apenas que Baal é um ídolo, mas já sabíamos isso antes do ordálio. Não é bom “tentar Deus”, dirá uma outra alma da mesma Bíblia. Também porque nós, muitas vezes, preparamos os altares, fazemos vigílias, gritamos e pedimos o milagre que não chega. E como não somos capazes de não perder a fé diante de um filho que não se cura e morre, essa mesma fé verdadeira não pode ser criada por nenhum milagre. Também para que, diante de um milagre, nós devamos sempre continuar a perguntar a Deus: “Porque não aos outros?”.

A parte luminosa desta página sombria do Monte Carmelo não está, portanto, na luz do fogo que irrompe na cena, mas na pergunta que Elias dirige ao seu povo: «Até quando andareis a coxear dos dois pés? Se YHWH é Deus, segui-o; mas se Baal é que é Deus, então segui a Baal!» (18, 21). A tentação idolátrica é tenaz, sempre presente e ativa no coração do homem e da mulher porque, diferentemente do ateísmo, não nega Deus, mas o reduz, primeiro, a ídolo e, depois, multiplica-o – toda a idolatria é politeísta, porque cada consumidor ama a variedade dos mercados. A idolatria não renega Deus, encolhe-o para o manipular. Os profetas dizem-nos; “escolhe”, porque, paradoxalmente, é melhor passar totalmente para Baal que juntá-lo, no templo, ao lado de YHWH. Mas nós preferimos muitos pequenos deuses inócuos a um Deus verdadeiro e incómodo. Eis porque, sobre a terra, a idolatria está muito mais presente que a fé. Quando o filho do homem voltar à terra, encontrará aí, certamente, a idolatria. A fé, não o sabemos. Esperamos que a encontre num, pelo menos. E, se vier rápido, aquele um podemos ser nós.

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