À escuta da vida / 7 – Desafiar e resistir ao escuro, não confundir aurora com ocaso
por Luigino Bruni
publicado no jornal Avvenire no dia 07/08/2016
“As heresias que devemos temer são as que se podem confundir com a ortodoxia”
Jorge Luis Borges, L’Aleph
O profeta não é apenas um libertador de homens, de mulheres, de escravos, de pobres. É também, e talvez sobretudo, um libertador de Deus. As religiões e as ideologias têm, por sua natureza, a tendência para prender Deus nas suas gaiolas, para construir tendas e templos onde o obrigam a entrar e, depois, enclausuram-no. Elaboram teologias e filosofias onde Deus não pode fazer mais que obedecer às leis que preparámos para ele, sem surpreender ninguém.
Se não fosse a profecia, estas gaiolas seriam perfeitas. O primeiro dom dos profetas é ver estas prisões de Deus e, depois, pedir e gritar pela libertação do Prisioneiro. As libertações proféticas, porém, não se realizam no tempo histórico do profeta, porque o seu hoje pode ser apenas o tempo da luta que, no entanto, cria a possibilidade de uma história diferente, amanhã. O profeta é como um velho que lança uma semente de carvalho: sabe que a árvore não será para ele.
Com o capítulo 9, conclui-se o chamado ‘memorial de Isaías’ (6, 1 – 9, 6), isto é, o grande relato, possivelmente autobiográfico, da primeira missão história do profeta e do seu fim desastroso. O profeta foi chamado a ser profeta e a falar a Acaz, rei de Judá. O rei não o escutou, não acreditou nos sinais, o coração do seu povo endureceu-se cada vez mais. Esta primeira fase da sua vida de profeta, que durou talvez dois anos, marcou-o profundamente. Os seus filhos tornaram-se as coordenadas da sua profecia. O primeiro, o filho da esperança: ‘um-resto-voltará’ (Isaías 7, 3). O segundo, o anúncio da desventura: «YHWH disse-me: “Chama-lhe: Pronto-para-o-saque/veloz-para-a-presa”» (8, 4). Nomes simbólicos, certamente, dentro de episódios onde a história e os factos são incertos, esfumados, desfocados. Mas não ao ponto de perder a concretização e a carnalidade daquela história profética. Não compreendemos Isaías nem o humanismo bíblico se renunciamos a ver homens de carne e osso nos seus relatos. Perdemos demasiado – quase tudo – dos primeiros capítulos do rolo de Isaías se o tornamos uma recolha de discursos morais e visionários, algo de totalmente desenganchado da vicissitude humana e história do seu autor. Os seus filhos são mensagens e sinais, mas, antes de mais, são crianças que levam gravado, para sempre, no seu nome a profecia do seu pai – na Bíblia, o nome é uma coisa muito séria.
Todas as vocações marcam a nossa carne pessoal e coletiva – não há nada de mais carnal que a sequela de uma vocação. Os profetas podem en-sinar palavras-carne porque, antes, foram assinalados pela palavra no mais profundo da sua carne. Todo o chamamento é pessoal, mas os seus efeitos são maiores que a pessoa. Toca amigos, esposas, maridos, filhos, colegas de trabalho, noivos que não se casaram, todos ‘feridos’ e ‘abençoados’ por aquele chamamento. É também este o motivo das genealogias que abrem as histórias dos profetas: “Isaías, filho de Amós”, “Jeremias, filho de Hilquias”. A bênção de uma vocação profética não influi apenas para a frente, para os filhos e os vindouros. Misteriosamente, também tem valor retroativo, influi para trás, dando sentido e bênção ao passado. Muitas vocações de filhos mudaram, remediando-a, a história dos pais, mães e avós, foram urdidura que revelou os desígnios de uma trama até então incompreensível. O nascimento de Jesus de Nazaré deu um outro sentido às dolorosas histórias de Tamar e Betsabé. O nascimento de cada filho dá um sentido diferente à história dos pais, ao seu encontro, aos encontros falhados, às suas alegrias e sofrimentos. Aquela criança concreta explica-nos a dor de um primeiro namoro falhado, dos abandonos feitos e imediatos: os nossos, os dos nossos avós. Eis porque cada filho é uma mensagem escrita em muitas línguas, umas mais simples, ainda vivas, outras mortas, algumas ainda não decifradas. Os profetas, com os seus sinais diferentes, são também “estelas de Roseta” vivas, que nos permitem decifrar línguas desconhecidas, para poder, finalmente, compreender histórias, poesias, inscrições funerárias.
No entanto, diferentemente do profeta, os seus familiares e amigos não têm um encontro pessoal com a voz. Nem sempre – quase nunca – chega o anjo, em sonho, a dizer: “José, não temas” (Mateus 1, 20); mas, frequentemente – quase sempre – os companheiros devem caminhar juntamente aos profetas, segui-los nas suas missões, nas suas dores, por vezes martírios, e sem o ter escolhido. Seguem uma voz que não ouvem diretamente, mas que, misteriosamente, os chama e os associa à vocação de alguém a quem estão ligados por outras vocações ou destinos. A sua história é, frequentemente, uma história de docilidade e mansidão, que os faz “herdar” a mesma terra dos profetas. Estas “vocações sem voz” são autênticas vocações, verdadeiras mensagens: «Eis que eu e os filhos que o Senhor me deu somos em Israel sinal e presságio» (8, 18). Sinal o profeta, sinais os seus filhos, sinal ‘a profetiza’ (8, 3).
Isaías fecha a sua primeira missão com uma solene entrega aos seus discípulos: «Guardo o testemunho, selo esta instrução, que só revelo aos meus discípulos» (8, 16). Da arqueologia antiga e de outros textos bíblicos, sabemos que estes atos eram momentos oficiais, jurídicos, que aconteciam na presença de testemunhas, que, algumas vezes, colocavam a sua assinatura. Um documento particularmente importante, um contrato ou um testamento, era ligado, em cima, com um fio, no qual de punha um selo para garantir a autenticidade, era deposto num vaso de cerâmica e, depois, entregue a quem o devia guardar. Isaías revelou a sua missão. Não lhe resta mais que entregar o seu testemunho (torah) e o seu ensinamento aos seus discípulos, com a mesma atitude espiritual de quem deixa um testamento. Para dizer que aquela palavra não escutada está viva e representa uma herança. O testemunho-ensinamento é entregue aos seus discípulos. É a primeira vez que encontramos a comunidade dos discípulos de Isaías. E aparece para receber a herança da sua palavra e do seu fracasso. Uma primeira tarefa de cada comunidade profético-carismática que recebe uma herança não é a gestão ou a administração dos sucessos do profeta/fundador, mas a guarda de um atestado de fracasso. Entre as muitas heranças de um profeta, a primeira que é legada e selada é a memória do seu fracasso histórico. Pelo contrário, quando se “legam” os sucessos e se esquece o fracasso, as comunidades perdem-se.
Há outras palavras que Isaías, antes de se retirar da vida pública (talvez por vinte anos), dirige aos seus discípulos: «Hão-de dizer-vos: “Consultai os espíritos dos mortos e os adivinhos que murmuram e predizem o futuro”. Respondei: “Só devemos dar ouvidos às instruções do Senhor”» (8, 19-20). Durante as crises sociais, morais e políticas, aumenta muito a oferta de adivinhos e de magos, frequentemente induzidos pela procura. Os profetas não são escutados ou são mortos. E, assim, naturalmente, aumenta o mercado da magia e dos adivinhos, juntamente às espiritualidades espetaculares dos efeitos especiais, dos “sinais”, das visões, dos milagres. Isaías profetiza a chegada iminente de grandes provações e sofrimentos para o seu povo, e sente necessidade de pôr de sobreaviso para esta perigosa doença dos tempos das crises. Porém, é muito significativo que o profeta enderece esta sua advertência aos seus discípulos, à sua comunidade profética. De facto, durante as crises, não abundam apenas os falsos profetas e os magos; também os autênticos profetas correm o sério risco de se transformarem em adivinhos.
A profecia é sempre fidelidade custosa a uma palavra não própria, que assegura apenas insucesso e perseguições. Nas idades de transição e de extravio coletivo, durante a carestia e as provações, os povos e os seus chefes procuram e pedem salvação. As respostas dos profetas não agradam, porque não indicam os caminhos largos e rápidos que o povo e os seus chefes quereriam, consolações ilusórias que os profetas, por vocação, não podem dar. As consolações dos profetas são verdadeiras porque não respondem aos “gostos dos consumidores”: os “clientes” dos profetas nem sempre têm razão. Nas dificuldades em permanecer fiéis à mensagem, chega, inexoravelmente, a grande tentação de suavizar a mensagem (“estas palavras são duras”: Jo 6, 60), para entrar em consonância cognitiva com os próprios ouvintes. E a profecia morre, transformando-se, paulatinamente, em produção de ilusões e pseudo-consolações, em ‘bisbilhotice de fórmulas’. Não conservam já o “testemunho e o ensinamento” e tornam-se vendedores de bens de consumo emotivo, organizadores de espetáculos de entretimento de grande sucesso. Mas é o próprio Isaías a dizer-nos o destino de quem cai nestas ratoeiras: «Quem não atuar assim não verá a aurora» (8, 20).
Quem está na noite, não pode ver a aurora. Pelo contrário, se trocamos a noite pelo dia, acabamos por confundir a aurora com o ocaso. As religiões dos adivinhos combatem o escuro verdadeiro da noite com fogo-de-artifício e, mesmo que chegasse a alba, não estariam em condições de a reconhecer, deslumbrados com os fogos-fátuos próprios. Quando os profetas se retiram e a crise é forte, a única coisa sábia que podemos fazer é resistir ao escuro, aprender a sua nova linguagem, tornar-nos companheiros solidários dos outros habitantes da noite do mundo – e são muitos.
As comunidades herdeiras dos profetas são fiéis ao ensino e ao testemunho se se tornam sentinelas do fim da noite. Se esperam, amam, desejam a alba, vêm os seus primeiros clarões, e anunciam a todos a bela notícia: «O povo que andava nas trevas viu uma grande luz; habitavam numa terra de sombras, mas uma luz brilhou sobre eles. Multiplicaste a alegria, aumentaste o júbilo. … Porquanto um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado» (9, 1-5)