À escuta da vida / 3 – Sons e cores do canto e nas lágrimas dos profetas
por Luigino Bruni
publicado no jornal Avvenire no dia 10/07/2016
“Segóvia dizia que o intérprete, em relação ao trecho musical, é como Jesus que ressuscita Lázaro: também o intérprete faz voltar à vida. Se não o faço reviver, o trecho permanece como morto”
Piero Bonaguri, Ensinamento segoviano.
A autêntica experiência religiosa é um dom para todos, mesmo para quem não tem fé ou tem uma fé diferente. Fora deste dom gratuito, há apenas barbárie, idolatria, auto-engano, consumismo emotivo, busca de poder e de dinheiro. Neste nosso tempo, de profunda crise das religiões e das fés, devemos voltar a falar bem do espírito religioso, a dizer boas palavras acerca dele, a bem-dizê-lo.
Somente a boa espiritualidade é capaz de curar as doenças e as perversões das religiões. Um mundo sem fés e religiões seria um lugar infinitamente mais pobre. Perderemos muitas palavras para descrever as coisas mais bonitas da nossa vida. As destiladas no alambique especial que se encontra na parte melhor da alma humana, que se ativa quando sente a necessidade de erguer o olhar para procurar o sentido profundo do mundo, da vida, da morte ou, pelo menos, para tentar. A nossa cultura já apagou muitas destas palavras, também porque quase nunca as religiões, com as suas instituições e os seus cultos, estão ao nível da melhor parte do homem. Acabam, quase sempre, por se assenhorear da vocação espiritual natural da pessoa, prometendo paraísos que não possuem, salvações baratas nos saldos de fim de estação, promessas muito banais para serem verdadeiras. Muitas das nossas palavras mais bonitas e grandiosas, concedidas pelas fés, foram aviltadas e destruídas pelas próprias religiões, por falta de generosidade, de gratuidade, de graça e porque os profetas não são ouvidos.
É este o primeiro significado do universalismo que, com as suas contradições, inspira o humanismo bíblico: «No fim dos tempos, o monte do templo do Senhor estará firme, será o mais alto de todos, e dominará sobre as colinas. Acorrerão a ele todas as gentes, virão muitos povos e dirão: “Vinde, subamos à montanha do Senhor, … Ele nos ensinará os seus caminhos, e nós andaremos pelas suas veredas”» (2, 2-3). Não se vai ao “monte do Senhor” para se tornar devoto dos donos do templo, mas para conhecer os “caminhos e veredas” da vida. Os profetas sabem que as religiões se transformam em desumanismo quando começam a contar as entradas para dentro dos seus templos, a convocar recenseamentos, a querer uma salvação apenas sua, contra a dos outros, quando esquecem que a revelação (torah) é um bem que pode ser usufruído apenas juntamente com os outros e em concórdia. (2, 4).
É dentro deste abraço universal da terra que não exclui ninguém, neste amplo olhar benevolente, que nos chega uma das surpresas mais belas contidas no livro de Isaías. E como um arco-íris no céu ainda cinzento, deparamo-nos com uma joia luminosíssima da literatura humana: «Transformarão as suas espadas em relhas de arados, e as suas lanças, em foices. Uma nação não levantará a espada contra outra, e não se adestrarão mais para a guerra» (2, 4). E, aqui, devemos só calar ou apenas rezar. Isaías vivia num mundo muito diferente, onde os utensílios da trabalho humano eram transformados em armas de guerra («Forjai espadas das relhas dos vossos arados, e lanças, das vossas foices»: Joel, 4, 10). Mas, um dia, vê algo mais, e escreve-o. Escreve o que não via, e fê-lo para que nós, hoje, pudéssemos lê-lo. O profeta é uma voz que vê também os desejos profundos, a vocação ainda não expressa da humanidade. E dá-no-la, dizendo-a, para que possamos ser, também nós, o que ainda não somos. Esplêndida então é a inspiração de quem quis colocar estas palavras de Isaías no muro frente ao palácio da ONU, em Nova Iorque. As palavras dos profetas são grandes porque infinitas, incompletas. Estão sempre diante de nós, como um chamamento constante a fazer tudo para que se tornem um pouco mais história, vida, carne.
No mundo que Isaías tinha à sua frente, a corrupção dos chefes do povo, com os seus cultos idolátricos e, por isso, o abandono dos pobres, produziam (como continuam a produzir, hoje) carestia e infortúnio para todos. Do país, desaparece «todo o sustento: todo o sustento de pão, todo o sustento de água; o capitão e o soldado, o juiz e o profeta, o adivinho e o ancião, o oficial e o nobre, o conselheiro e o artesão, e o entendido em feitiçaria» (3, 1-3). Desaparecem os adivinhos e os maus conselheiros mas, sobretudo, desaparecem os sábios e os profetas. Restam, na melhor das hipóteses, apenas bandos de jovens incapazes: «em vez de príncipes dar-lhes-ei meninos, e serão governados por crianças» (3, 4). Quando os povos se extraviam e perdem o fio de ouro da sabedoria que gerou (quase sempre, nas grandes dores e no demasiado sangue) pactos, constituições, boas leis, caem em profundíssimas armadilhas de pobreza, acabam dentro de círculos viciosos e perversos. As carestias e as grandes crises são, em primeiro lugar, o fruto da não escuta dos profetas e das pessoas honestas e, depois, geram, por sua vez, a fuga e a expulsão dos profetas e dos sábios.
Os melhores homens e as melhores mulheres já não são atraídos pela bonita profissão da política e, assim, deixam o caminho livre a quem procura o poder por interesses pessoais ou partidários. E o círculo vicioso fecha-se; a armadilha torna-se perfeita. Nos casos mais graves – como os descritos por Isaías – a crise é muito profunda e generalizada para manter longe dos quadros do governo também os delinquentes, nada mais havendo para pilhar e partilhar que a “ruína”: «Assim falará um irmão a outro irmão na casa paterna: “Já que tens pelo menos um manto, serás tu o nosso chefe, para governares esta ruína”. Quando chegar aquele dia, o outro lhe protestará: “Eu não sou médico, e na minha casa não há pão nem tenho manto; não me façais chefe do povo”» (3, 6-7). Permanecem apenas os chacais: «Vós devorastes a minha vinha, e os despojos dos pobres enchem as vossas casas» (3, 14).
E é aqui, quando a esperança civil morre, que ao profeta resta apenas o seu canto, a sua oração de lamento em relação ao seu povo: «Vós devorastes a minha vinha, e os despojos dos pobres enchem as vossas casas» (3, 14). O povo torna-se “meu povo”. De Deus e de Isaías. É também esta a missão do profeta: saber chorar pela ruína do próprio povo, das comunidades, das pessoas, pela nossa ruína, pela tua, pela minha. Quando nem sequer Deus é escutado, quando as suas palavras de convite ao arrependimento e à conversão ficam sem escuta e ultrajadas, o profeta tem um único recurso: pode chorar pelo seu povo.
Pode entoar o seu canto de lamentação, pode misturar as suas lágrimas com as da gente esmagada. E, por vezes, na história, aconteceu o milagre que alguém tenha recolhido o pranto e o grito dos profetas mais que as suas palavras – não há palavra com mais força que a do grito: o Gólgota no-lo recorda constantemente. E aconteceu quando, depois das guerras e das grandes loucuras coletivas, poucas mulheres e poucos homens, por vezes apenas um, naquele pranto-lamento-grito, sentiram uma vocação. E, depois, puseram-se a reconstruir cidades, comunidade, empresas, países inteiros. Quando o fizeram, a seu lado estava Isaías, mesmo sem o saberem. A solidariedade das lágrimas é uma forma altíssima de amor. É típica dos profetas, poetas, realizadores, músicos, escritores e de tantas mulheres e tantos homens que continuam a acompanhar as ruínas dos outros apenas com lágrimas, depois de terem esgotado todos os outros recursos. Muita poesia e literatura humana – também a que permanece escondida nos diários e nas cartas – é um constante e profundo exercício de solidariedade do pranto e do lamento. Um grande dom da verdadeira arte é conseguir ver as vítimas da história, reais ou criadas pelo seu génio (e, portanto, também reais); e, depois, aproximar-se delas, olhá-las verdadeiramente, tornar-se seu companheiro de caminho e de lágrimas. “Vendo” Cosette e Jean Valjean, Renzo e Lucia, Victor Hugo e Alessandro Manzoni, fizeram-nos ver melhor e mais os miseráveis da terra. A criação dos seus personagens deu-nos novas palavras para compreender as vítimas à nossa volta e em nós e, por vezes, amá-las mais.
Este olhar criador dos grandes artistas, quando é honesto e nasce na dor (e, por isso, é muito raro), não ama menos o mundo do que quem o serve, em cada manhã, atendendo e servindo familiares, amigos, doentes. Amores diversos, mas todos preciosos e essenciais para tornar mais próximo o cumprimento das palavras dos profetas ou, pelo menos, da sua possibilidade, Eis porque os profetas têm uma imensa necessidade de nós, porque são os eternos indigentes das nossas mãos, do nosso coração, da pena e da alma dos artistas. Há uma amizade entre as palavras mais verdadeiras da terra. Não teremos os instrumentos morais para compreender verdadeiramente as palavras dos profetas, de Job, de Jesus, sem os muitos poetas e artistas que, com os seus carismas, alargaram o repertório da alma do mundo, tornando-nos capazes de ouvir ultrassons e de alargar o espetro das cores visíveis aos olhos da nossa alma.
Amanhã, dentro de cem, mil anos, os homens poderão compreender melhor e mais as palavras bíblicas, graças aos novos artistas, filósofos, às mulheres e aos homens espirituais, que continuarão a dar palavra, sons, cores. Os sons e as cores dos profetas apagar-se-ão apenas quando o último homem deixar de dar a própria voz à sua palavra. Mas a Bíblia poderá, sempre, renascer no dia em que alguém reconhecerá a sua sarça-ardente na de Moisés, lerá o seu nome no de Adão, e sentir-se-á Noé quando, no dilúvio do seu tempo, começar a construir uma arca de salvação. E começará a narrar esta história a quem a quiser escutar.